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publicado por berenice, em 27.12.09 às 16:51link do post | favorito

 Havia uma cumplicidade grande entre mim e a minha avó materna. Lembro-me dela todos os dias e, quando ela começou a trilhar pelo caminho dos setenta e muitos anos, comecei a ter medo de a perder.  Às vezes surprendia-a só, na penumbra, a olhar através da janela a paisagem já sem contornos. Apercebi-me depois que o que ela observava era o seu interior, o seu passado. A paisagem era apenas o pano de fundo.

  Gostava particularmente de andar com ela pelos campos. Quando chegava o tempo de fazer o presépio íamos por esses montes fora procurar musgo. Com um sacho e alguma habilidade conseguíamos descolar bocadões grandes. Enquanto isso, eu ia perguntando sobre o nome das ervas e os seus efeitos curativos, já que esta área sempre me interessou pois considero que a Natureza oferece a cura para todos os males. Contudo, não perguntei tudo o que devia. Talvez porque a minha avó era pessoa de poucas palavras, talvez porque muitas perguntas quebravam o encanto destes momentos únicos. Assim, aprendi apenas o mínimo: os efeitos do chá de poejos ou  da infusão das malvas bravas. O património que ela me deixou, mesmo assim, apresenta um valor que não tem equivalente em bens materiais. Trago ainda na alma o aroma da terra fresca que a avó esboroava com perícia avaliando as suas potencialidades. Havia terra vermelha e terra branca. Da branca só me lembro que produzia trigo que no Verão, de saturado, pedia para ser colhido. E a terra abria fendas, morta de calor e de sede. No caminho para esse pedaço de terra, o do trigo, havia tufos de lírios roxos que eu admirava extasiada: era a cor, o acetinado das folhas, a macieza das pétalas o aroma inconfundível. Mas logo a seguir me sentia atraída por uma enorme alecrineira à qual  eu furtava raminhos partidos com suavidade. E assim fui preenchendo a minha infância com  maravilhas da Criação, maravilhas essas que ainda hoje são como fortes mastros a que me agarro em momentos de tempestade.


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publicado por berenice, em 25.12.09 às 10:34link do post | favorito

 Apetece-me partilhar um certo sentimento que toma conta de mim neste dia. É uma apatia e um vazio como se o nosso conteúdo interior tivesse ido, por engano, em qualquer pequena dobra de um papel de presente depois de desvendado e transformado  em lixo, lixo que engrossa o trabalho dos que o recolhem.

 Tento recordar outros Natais e é sempre a mesma coisa: definitivamente algo de artificial se passa, qualquer coisa que mexe com a nossa natureza. Já me tenho questionado se não serão as perdas de familiares muito queridos que, deixando um lugar cativo na mesa da consoada, nos causam esta tristeza; outra possibilidade é a culpa. Será que temos  o registo,  bem lá no fundo do nosso coração, dos milhares de pobres, orfãos, desamparados e doentes que no dia 24 de Dezembro não podem usufruir do mesmo privilégio que nós? Sim, porque  pese embora a  tendência para o individualismo exacerbado que marca os tempos que correm, a nossa natureza é de tribo. Se um elemento da tribo acusa um mal-estar, uma incapacidade, lá estão os outros elementos que fazem tudo para o trazer de volta e, se estão de partida, só o abandonam quando não é possível fazer mais nada e ele está a pôr em risco a sobrevivência de todos os outros.

 Inclino-me ainda para o consumismo em que a nossa sociedade transformou esta quadra: "que maçada, o que é que vou oferecer a fulana?" , "ainda quase não comprei nada, tenho que esperar pelo ordenado deste mês"; "Tenho de fazer uma lista de compras, deixa ver...nozes, tâmaras, vinho, chocolates, queijos variados e presunto, patês, cogumelos e couves de Bruxelas e ainda mais beringelas.." é um nunca mais acabar de produtos que habitualmente não se consomem. E as prateleiras dos supermercados a esvaziarem para profunda satisfação dos proprietários.

 


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publicado por berenice, em 20.12.09 às 20:30link do post | favorito

 Confesso que sinto uma incrível paixão pelos anos sessenta.

Muitas vezes me pergunto porquê e, como professora de História, sinto um pouco de vergonha por causa da ditadura e da guerra colonial. Eu própria senti na pele a forma acutilante como foram inculcados nas crianças os princípios necessários para o" correcto exercício da cidadania ". Nasci numa aldeia e, como em todas as aldeias, a Professora e o Padre eram figuras importantes para a percepção de "ondas maléficas" e para a manutenção da Ordem. A minha professora não me deixou saudades. Tinha cinquenta e muitos anos, umas pernas musculadas, uma cabeleira branca que atirava toda para trás com altivez e,  nos pés, umas sabrinas que a faziam parecer da família dos felinos. Diziam que se embebedava mas não sei se é verdade. O que eu sei é que perdia o controlo de tal forma que o rosto que ficava vermelho como um tomate e rilhava o dente e gritava. Batia à bruta mas só nas meninas que tinham uma família tão pobre e triste que ninguém pedia contas. Aí, desforrava-se e batia com a cabeça das moças no quadro, agarrando-as pelos cabelos. Ela própria ficava tão desalinhada como as vítimas. Mas deixemos a professora. Hoje, com a idade que ela tinha naquela altura, avalio-a como uma pessoa com grandes dificuldades de comunicação, muito só e muito infeliz. A esta hora já não está entre nós: paz à sua alma (Dona Manuela, só lhe peço perdão quando eu própria conseguir esquecer umas certas coisinhas que a senhora disse e fez. Tá bom assim?).

 Nos anos sessenta pairava no ar, no universo  em que eu me movia (porque havia muitos universos), uma ingenuidade que se manifestava desde  as canções que se trauteavam ou os escassos filmes que víamos até aos padrões dos tecidos com que mandávamos fazer as nossas roupas. Penso que toda a gente da minha idade se lembra da moda dos malmequeres ou dos vestidos que eram tubinhos de pintinhas brancas com fundo azul escuro ou preto. E tinham cabeção e gola com bordadinhos, que delícia!!!

 E quem não se lembra do filme "Música no Coração'" ? E os Festivais da Canção em que Portugal ficava sempre em último lugar? Sei quem ele é.... ele é bom rapaz, um pouco tímido até..(que estupidez)! E os quadros onde se escrevia a pontuação a giz eram simplesmente maravilhosos!

 Nos anos sessenta, para além desta ingenuidade fabricada, havia o que me apaixona de verdade: era a esperança e o terreno firme que pensávamos pisar. Quando namorávamos era a sério, o casamento era para sempre, se estudávamos era com determinado objectivo, não se falava de crise, não se falava de desemprego... mas talvez não fosse só isso. Que raio de magia é esta  que anda agarrada como uma lapa aos anos sessenta?!


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publicado por berenice, em 17.12.09 às 15:31link do post | favorito

 Sempre gostei dos meus momentos numa casa sem gente. Obviamente, prefiro que sejam apenas momentos pois, é assim, que posso entender melhor a energia que as pessoas deixam nas coisas, ou seja, a sua alma. Numa casa sem gente há um silêncio que se anuncia pleno de vida: é um silêncio que não chega a sê-lo porque um conjunto de pequenos, quase imperceptíveis ruídos povoam um espaço e um tempo que nos envolve. Não sabemos se é o frigorífico que zumbe e se impõe ou se é antes o relógio com o seu tic tac ou se o vazio, por si só, tem uma voz. Pessoalmente, não acredito no vazio.

  Quando eu era menina ia com frequência visitar a minha avó. Às vezes encontrava a porta aberta e ela não estava o que queria dizer que andava por muito perto e então eu chamava pondo as mãos em funil: "Veliiiiiii..." E a sua figura incontornável aparecia. Quando a porta estava fechada coma chave na fechadura queria dizer que ela estava um pouco mais longe: aí, eu dava a volta à enorme chave e esperava. Nessas situações  aproveitava o conforto que é sentir a alma das coisas.

  Ontem, pela madrugada, senti isso mas de uma forma dolorosa como se as coisas não tivessem uma canção mas um gemido. Não foi previsão do sismo, não tenho esse poder, foi apenas uma certa forma de sentir que me acontece muitas vezes. O sismo aconteceu pela  1 hora e 37 minutos, forte e implacável. Fiquei à espera que as paredes me caíssem em cima e a minha cabeça esvaziou-se de tudo. Não caíram. Se assim fosse eu não estaria aqui, naturalmente. A seguir, senti uma grande calma como se a Natureza tivesse vindo ao encontro de todas as pessoas para lhes lembrar que também ela sofre das suas agonias e que somos, com os nossos afazeres e as nossas mesquinhices, muito pequeninos.


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publicado por berenice, em 11.12.09 às 22:28link do post | favorito

 Ela era o meu anjo da guarda ou talvez, melhor dizendo, o cura em cuja igreja eu me refugiava para pedir conselho e ajuda.

 A minha amiga Teresa tinha sido abandonada por todos: marido, filho, irmãos. Também não tinha coisas boas para contar da falecida mãe e com frequência dizia "Deus lhe perdoe que  por mim está perdoada" que o mesmo era dizer "não consigo perdoar-lhe".

  Mas a minha amiga era arrogante e vaidosa. Pertencia a um destes tipos humanos (frequentes, aliás) que acreditam que são dotados de uma inteligência superior aos demais.

A verdade é que a minha amiga contava com três ou quatro pessoas (entre elas eu) que iam a casa dela à procura de uma palavra, de um ombro de um abraço.E isto, por si só, fazia-a sentir-se importante.

  Num fim de dia já longinquo, por esta altura do Natal, bati-lhe à porta mas ia alegre e bem disposta. Seguramente não ia dizer-lhe que me sentia perdida  e sem coragem para prosseguir. Ela estava encostada ao fogão a preparar um ponto de açúcar para recheio de uns fritos ou qualquer coisa assim. Falei naturalmente com ela, sobre fritos de Natal mas sei que ambas sentimos um friozinho gelado pela coluna acima. É aquele frio indescritível de quem vive a solidão e sente medo.. Eu tinha família, mas sobre a minha cabeça pairava uma ameaça de tempestade que me trazia, por antecipação, desassossegada.

 A minha amiga, numa noite, teve sintomas de doença grave; chamou-me por telefone, a voz a tremer. Fui, como é evidente. Levei-a ao Hospital. A partir daí, foi fulminante. Tive que me ausentar por dois anos mas, periodicamente, contactava com ela. Voltei, enfim, para ficar. A primeira pessoa que pretendi visitar foi ela. Bati à janela com os três toques habituais mas estranhei a demora. Finalmente a persiana correu perra e uma mulher que eu não conhecia, mostrou-se e disse: a Teresa morreu.


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publicado por berenice, em 05.12.09 às 08:42link do post | favorito

                           " A ESPERANÇA É A EXIGÊNCIA ONTOLÓGICA DO SER HUMANO"

                   

                                                        Paulo Freire (1921-1997)

 

E quem fala de Esperança fala  de Fé; e, já agora , acrescenta-se a Caridade. Isto aprende-se de pequenino e é útil ao longo da vida porque em momentos de desespero a Esperança do "vai passar" e "melhores dias virão" é o alimento de que o nosso espírito precisa. E, também quando em apuros ou por medo que as dificuldades surjam de um momento para o outro, a Caridade impõe-se. Porque é muito raro alguém dar gratuitamente alguma coisa a alguém. A Caridade ao ser praticada espera o reconhecimento de Deus pois quem dá aos pobres a Ele empresta. Claro que há quem faça o bem sem esperar nenhuma recompensa e daí talvez até espere algumas renúncias e uma mudança de rumo na sua vida pessoal, mas o que faz realiza-o. Cá está o prémio.

 Mas deixemos o que cada um faz porque estou para aqui a falar e ontem fiz uma coisa que aos olhos de Deus e da Igreja foi muito feio. Saí do supermercaco e estava um homem sentado à porta com um papel que dizia não sei o quê: estendia a mão para quem passava invocando o Natal. Zangada, pensei: não dou nada, Senhor (este senhor era Deus e não o pedinte) porque não me socorres nas minhas aflições; porque te tenho feito desde há uns anos a esta parte apenas três pedidos que nem sequer são a lotaria ou coisa que o valha mas mudanças urgentes na minha vida, para que consiga sobreviver e não estão nas minhas mãos.

 Não levei os meus pensamentos muito a sério e, como fui para o dentista de seguida, o cheiro do consultório o barulho das brocas e de todos aqueles aparelhómetros que me provocam arrepios, fizeram-me esquecer o episódio da manhã.

 Ora, é bom que explique que há uma hora do dia em que, (por acaso é à noite) me sinto mais racional que nunca e a minha identidade surge filtrada de poeiras e outros agentes externos. Gosto de viver nesses momentos porque me sinto de bem comigo e até falamos como duas pessoas inteligentes. E, vai daí, pus-me a acusar Deus de nunca atender ninguém em nenhuma aflição, de deixar que num instante apenas, no mundo inteiro, milhões de gritos de horror se soltem, milhões de súplicas Lhe sejam dirigidas sem uma resposta, conseguindo manter um silêncio tão total e tão profundo como o silêncio dos túmulos. E falava alto, num monólogo e colocava hipóteses: talvez tenhas morrido, pois se tudo na Natureza morre por que não Tu? Talvez estejas agonizante com tanto sofrimento ou, pior ainda viraste-nos as costas. E o meu monólogo terminou, as lágrimas secaram e concluí, mais uma vez que Deus foi,  Deus é, UMA EXIGÊNCIA ONTOLÓGICA DO SER HUMANO. Repararam que me dirijo a Ele,com  respeito, apesar de tudo? É que quando houver mais momentos em que sufoco de sofrimento, tenho que O chamar quer Ele exista ou não. Por isso não nego, completamente,  a Sua existência.


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